quarta-feira, 29 de outubro de 2014

preamar

Somos todos farinha. Mas cada qual de um saco. O curioso é que puxamos um ou alguns para perto do nosso, sempre que bate a ressaca. Sacamos com muita rapidez nossas armas, com a mesma habilidade com a qual reivindicamos o desarmamento (dos outros). Já estivemos mais próximos, quando sobrevivíamos do mesmo naco de fogo e luz. Seguimos e já perseguimos falsas bruxas e Jesus. Somos irremediavelmente livres e prisioneiros de chistes que apontam, com o dedo em riste, o que existe na surdina, em cada um de nós. Por tudo isso e nem tanto, vou até a beira do mar encontrar meu chão.
É nesse preamar que deito e rolo, para me esvaziar da solidão primeira e sonhar a noite inteira no colo da minha amada.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

ganhos e perdas

O garanhão casado, movido pela necessidade de conquista, aproxima-se da mulher atraente e sedutora. Enaltece a beldade, maximiza seus encantos e ainda se gaba por ser venerado pela esposa.
O garotão, traído pelo narcisismo, esquece que as paredes são finas e têm ouvidos, inclusive os da mulher traída. 
Resumo da ópera: ele ganha a amante e perde aquela que o amava.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

corações e espelhos

Todos os corações são vermelhos
De muitas cores são os espelhos
Todas as orações são ouvidas
Até as que escapam entre os dentes
Mas as bênçãos são divididas
Face a pedidos tão excludentes
O certo pode ser escrito em linhas tortas
E só a paixão ressuscita palavras mortas
Todos os corações vermelhos são
Os daqui e os mais distantes, lá no Japão

os donos da verdade

A verdade é uma amante muito volúvel. Entrega-se a todos e vai embora depressa. Deve ser o bem mais disputado do mundo, pois muitos, se não todos, consideram-se seus proprietários. O curioso é que não há cercas, escrituras, embora tantas criaturas acreditem que são criadoras dela.
E ninguém fale em reforma agrária neste latifúndio, pois deter apenas um lote é como ter um bote e morar no deserto. 
Amigos e amigas, ela é admirável por ser indomável e não pertencer a ninguém. Além do que, não raras as vezes, é anfitriã indesejável, por não fazer de conta que não se desaponta com muitos dos eventuais convidados.

sábado, 25 de outubro de 2014

a celulite da alma

Tudo está em seus lugares. As suntuosas poltronas da primeira classe acomodando bundas abundantes. A cortina vedando imagens, mas permitindo a passagem dos odores. Aos indesejáveis outros é permitido
sentir sem ter. Ao contrário dos abundantes, que têm sem sentir qualquer constrangimento. E por que são tão diferentes? Estudaram mais, são geneticamente mais inteligentes ou predestinados ao luxo? Certamente, são indiferentes ao lixo que os rodeia. Mas o lixo foi aumentando, aumentando, acumulando tanto quanto seus ganhos de capital, até quase encostar em seus narizes empinados.
Ora, ora, quanta ironia! Agora, os proprietários de tronos também sentem, mesmo com repulsa, que a desigualdade também pulsa.
Sim, reis e rainhas, vocês estudaram mais e melhor. Não foram vítimas da evasão escolar, não moram longe de tudo, inclusive das oportunidades. Não precisam de cotas, a única cotação que lhes interessa é a do mercado financeiro. Vocês têm dinheiro, mas quem só tem dinheiro é muito, muito pobre. Herdaram as poltronas, os certificados de nobreza, orgulham-se de seu pedigree. Revoltam-se com as revoltas, indignam-se com os rolezinhos. Vocês dominam vários idiomas (vocês adoram dominar), mas desconhecem o idioma da tolerância, da generosidade, da compaixão, da equidade.
Trem só se for bala. Mas essa palavra assusta, lembra criminalidade, favelas, pobreza. É verdade, há tiroteios por toda parte (ultimamente, inúmeros nas redes sociais), mas balas são menos perdidas que gerações inteiras de deserdados, crianças e jovens precocemente destituídos de colos. Que muito cedo banalizam a morte física e psíquica do futuro.
Gente assim aprende depressa a chamar sofrimento de realidade.
Um recado à elite: alma também tem celulite.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

o juiz

O Juiz de uma pequena cidade senta no banco dos réus. Poucos sabem que ele está entre a vida e a morte (como todos nós). 
Um despreparado advogado contratado pelo magistrado vomita, antes de ingressar no Tribunal, por acreditar que a vida de seu cliente está em suas mãos. Coloca para fora, portanto, as próprias culpas que não foram absolvidas, os remorsos que deixaram de ser absorvidos no processo da sua vida. 
Outro advogado, filho do Juiz, entra no circuito e elabora a linha de defesa do acusado, a quem condenara tantas vezes por violar a "lei do
afeto".
Advogado, filho, juiz, réu e pai fundidos num banquete de significados remotos e de pouco controle. Um coquetel molotov de lembranças e esquecimentos que explode na alma das contradições do lugarejo.
Como ser justo com o outro e consigo mesmo, em meio ao vozerio de fantasmas interiores?
Ausências também podem ausentar-se, derrotas podem ser derrotadas,
o que se imaginava perdido ainda pode ser pedido.
Risos, lágrimas, flexões de sobrancelhas. Na tela rolavam os créditos e na minha poltrona uma ideia me cutucava. Cotidiana e metaforicamente, somos todos juízes e advogados. Quem são os réus?

terça-feira, 21 de outubro de 2014

como somos

Ah!! Benditas eleições. Não apenas a que determinará quem estará nos Palácios, mas as que fazem emergir os gritos até então escondidos em nossas gargantas. Colecionamos frustrações medievais, rancores ocultos no interior de paredes, como o fizeram cubanos simpáticos a Fulgencio Batista com seu ouro de tolo, na vã pretensão de desenterrá-los, quando a Revolução popular fosse enterrada. Essas exumações emocionais são
catarses poderosíssimas, embora desgovernadas. Despencam pelas ladeiras do inconsciente, até se espatifarem no concreto da realidade imparcial e apartidária.
Somos o que somos e o que fomos. Somamos fomes, dando-lhes nomes nem sempre corretos. O festival de ofensas verbais que infestam redes sociais é um espetáculo que incentiva a reflexão desapressada. Corações mais ressecados que o Sistema Cantareira chovem, trovejam, sem que vejam entrada ou saída. Labirintos escuríssimos em que medos trafegam em mão dupla como morcegos cegos, chocando-se uns com os outros,
numa Babel pós-moderna.
Até domingo que vem (e que ele venha logo), o tiroteio maniqueísta lançará suas balas perdidas como os sonhos de quem desistiu ou jamais se permitiu sonhar.
Li palavras da lavra de quem não conheço, que me fizeram um bem enorme. Conheci-me um pouco mais, revisitei páginas da minha história e como gostei de estar lá, estando onde e como estou. Preconceitos, generalizações, extremismos, amarguras crônicas são mais letais que o vírus do ebola. Tudo o que arranha a Natureza é bola fora, gol contra,
samba atravessado, harmonia desafinada. A beleza e a sabedoria esgotam-se, levando para o esgoto os maiores tesouros desta curta e insubstituível vida.
Tomara que também a vida tenha segundo turno, segundo tempo e que não seja rebaixada para a segunda divisão!

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

medo de que?

Vivemos uma crise de poder. Do tudo pode ao tudo poda.
Isso acontece no ambiente privado e no público. Em família, tememos dizer não aos filhos, que secretamente temem o excesso de sim, pois a saúde emocional deles depende de limites, do (pátrio) poder. Expressamos repúdio pelo autoritarismo e ao mesmo tempo clamamos pelo Estado punitivo, vigilante, entrincheirado em suas câmeras físicas e metafóricas. Soltamos a voz contra a corrupção e corrompemos nossas vozes, que calam diante de tanta iniquidade. Mal sabemos a igualdade que somos capazes de suportar, jamais sentimos o frio que só o outro (aquele de quem pouco ou nada sabemos) sente. Adultos, somos reféns das crianças que não conseguem dormir dentro de nós. Vivemos com medo de morrer de medo ou morremos de medo de viver sem medo?
Cada qual, a seu tempo, descobrirá.

domingo, 19 de outubro de 2014

terceiro turno

Política, assim como futebol e religião, são válvulas de escape para toneladas de emoções reprimidas. Catarses quase incontroláveis que se sucedem como avalanches. Palavras são proferidas e escritas como trovões ameaçadores, armas brancas que ferem todas as cores da existência. 
Se queremos um País melhor, não chegaremos ao nosso objetivo com manifestos de ódio, intolerância, excludência, preconceitos rasos. Rios assim não são navegáveis, mas podem afogar coisas preciosas, como a solidariedade, a compaixão e o desejo sincero de aprimoramento.
Posso votar num Partido sem partir para cima de quem tem opinião diferente. Podemos todos fazer diferente, fazer melhor, fazer o melhor que há em nós, o que suscitará nos outros movimento análogo.
Há pessoas de quem gosto que são flamenguistas, vascaínos, evangélicos, católicos, judeus, muçulmanos, budistas, ateus. Mas todos, sem exceção, são humanos. Ideologicamente à direita ou à esquerda, a direção preferencial e saudável é olhar o outro de frente. O que impede que nos unamos, apesar de ideologias, preferências clubísticas e convicções religiosos sutil ou substancialmente diversas, que podem partir amizades ao meio? Diversos são os caminhos que levam à harmonia, com a sabedoria e a sensibilidade que estão dentro de cada um de nós, por mais que alguns as temam tanto. Perder o medo de reencontrar a criança que fomos e somos, ter a coragem de saber-se frágil, encarar o desamparo que nos acompanha e conosco estará sempre facilitarão o enfrentamento de fantasmas que nos sussurram absurdos.
Se cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é, para que disseminar a dor, se o que insemina a vida é o amor
?

sábado, 11 de outubro de 2014

o menino e as estrelas

Ainda bem que há um menino morando sempre no meu coração. A cada porrada, ele me estende a mão e me convida a descobrir caminhos, tão diferentes de atalhos que não conduzem a lugar nenhum. O garoto que fui e sempre serei não coloca em meus ouvidos cantos de sereias, mas me sugere que eu mergulhe para o alto, o suficiente para repousar em outros ninhos, onde não haja tantos predadores, onde não doam tantas dores. Como aceitar que qualquer sacanagem seja coisa normal? Então, não há nenhuma normalidade em mim e nem quero que haja. Devolvam-nos as estrelas que nos guiavam ou permitam que nós as guiemos para longe, muito longe de onde mora e se esconde a escuridão.

decoração

Conhecimento não é o que a gente decora, mas o que decora a gente.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

rotas

Deus me livre da perfeição, pois não sou divino. A exemplaridade causa-me arrepios. Ser modelo só para quem desfila em passarelas. Paradigmas,
receitas, cartilhas só servem para aprisionar, mutilar a originalidade. Aos impecáveis eu sugiro que se permitam pecar, ainda que sejam pequenos e deliciosos os pecados. Como seria a convivência com quem acerta todos os chutes e passes? Chutarei: só um passe de mágica conseguiria suportar toda a exaustão causada por quem é sempre "tão".
A mim, os tortos, enjeitados. Mas vivos e não quase mortos por compulsões cruéis. Desejo a proximidade dos que desejam, titubeiam, enganam-se, aprendem com os tropeços e voltam a tropeçar, ainda que em buracos distintos. A essas criaturas estendo a mão, o tapete modesto e acolhedor. E quem terá topete para julgar? O jogo é jogado e assim deve ser. Abraço as vitórias e sorrio para as derrotas. Alguns triunfos são rotos, alguns insucessos são rotas. E é por elas que se chega onde se precisa chegar.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

o bote

Eu sou metade Quixote
A outra metade aguarda meu bote
E ele virá, pode ter certeza
Para desatar todas as correntes, em meio à correnteza
Meu mote é viver distraindo a morte
Pois a vida opera milagres sem corte

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

segundo tempo

O Nordeste dilmou, São Paulo tucanou. Em quem terão votado os nordestinos radicados em Sampa? E os paulistas, teriam radicalizado no antipetismo? O mineiro Aécio perdeu em Minas Gerais, que elegeu um Governador petista. O PT perdeu acintosamente em SP, berço do Partido. O assistencialismo, encarnado pelo bolsa família, incomoda a classe média. Os desassistidos não estão na moda, mas conseguiram colocar coisas em suas bolsas, inimagináveis até pouco tempo atrás.
Marina e o PSB assustaram-se com o sucesso repentino nas pesquisas e acabaram qual serpentina, descrevendo uma parábola que baixou um pouco a bola alternativa. Para onde irá Marina, morena Marina? Olhará à direita, à esquerda, esperará o sinal ficar verde ou vermelho? Voará para os tucanos ou lavará a seco suas mãos, como boa ambientalista?
Votos não são endossáveis, como cheques. Mas ambos podem estar sem fundos.