sábado, 29 de outubro de 2011

encomenda

Mãe, não me deixa no escuro.
Lá eu escorrego e não encontro o que procuro.
Na claridade eu me reconheço e me curo.
Vê se entende o que não consigo te dizer.
Meu corpo e minha alma se precisam,
mas ficam indecisos quando não se podem ver.
Minhas mãos carregam décadas de escadas,
cada qual com seus degraus,
em graus variados de dificuldade.
Como eu queria sentir saudade daquela idade,
em que a noite passava tão depressa,
com a manhã chegando quando a vontade começa.
Encomenda novamente aquele Sol
que escondia toda sombra sei lá onde.
Envia para o endereço certo, que eu recebo.
E não se esqueça que perto é bem melhor que longe.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

homens não têm medos

Homens não têm medos! Jogam todos fora, junto com outras coisas.
O retrato, o tato, a mensagem, a viagem, o perdão, as palavras que
seriam ditas, as benditas ou malditas lembranças...tudo vai para o lixo,
ao menos na imaginação.
Homens não têm medos! Lágrimas, noites, incertezas, carências são
engolidas, na mais abjeta ficção.
Homens não têm medos! Precisam demonstrar segurança, arrotar
convicção, aparentar o que, muitas vezes, não são.
Homens não têm medos! São audazes, destemidos, guerreiros
escondidos, com medo do não.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

leitura silenciosa


Ela sempre fora dele,
ele sempre fora dela.

Como você lê essas frases?
Não há variação no tempo,
mas o espaço será definido
por sua leitura.


sábado, 22 de outubro de 2011

remo

Encontrei em teus olhos lágrimas abandonadas. 
Em tua boca, beijos esquecidos.
Havia em tuas mãos vestígios de freios, feito estradas.
Em tuas costas, séculos escondidos.
Olhei teus sapatos, como peças de teatro, 
divididas em atos. 
Areia de desertos,
sulcos de passos incertos, 
poeira de descaminhos, 
a frustração de espinhos.
Cuidei das feridas, 
mas daquelas escondidas,
sem cicatriz,
clandestinas como você quis.
Aquietei seus rancores,
ruidosos como tambores.
Ouvimos, agora, o som de remos
que nos levam para onde queremos.




sexta-feira, 21 de outubro de 2011

longe

Sou um dado, com tantos e tantos lados
que geralmente os deixo de lado, só para
seguir alado, ao lado da poesia, longe da
dicotomia do sim e do não.

des(culpa)

Era uma vez uma criança um pouco crescida que, após uma travessura, dividida entre
o gozo e o medo, esperou pelo castigo, em vão.
Surpresa, gratificada, frustrada?
Quem arrisca colocar um risco sobre a alternativa mais provável?
Não nos surpreendamos nem nos prendamos à solução mais simples.
Isso acontece mesmo, a busca inconsciente de uma culpa, de algo que se interponha entre o desejante e o desejo, um muro invisível, feito de possibilidades que se disfarçam em impossibilidades, proximidades transformadas artificialmente em distâncias, calor trocado por frio, vinho por um cálice vazio.
E a busca absurda arrasta-se como corrente de um fantasma recorrente que, de tão familiar, já nem assusta mais.

p.s.: inspirado no texto "Cursed" da Patrícia, no blog Dias genéricos.

paraquedas

Para que?
Se é a queda que ensina,
paraquedas não precisa.
Que o corpo sinta a gravidade
e se entregue ao sossego
de um breve levitar.

Até quando?
Qual a medida correta
para transformar curva em reta
e suprimir a surpresa?

Por que?
Há coisas que não cabem em respostas.
Basta admitir que gostas e deixar acontecer.


quinta-feira, 20 de outubro de 2011

magnetismo

O primeiro olhar pode ser o início da história.
Mas o segundo olhar...é dedicatória!

ainda sobre a verdade

Às vezes, é tarde, muito tarde, para ser manhã ou noite. Por vezes, não é de caminho que precisamos, mas de carinho, pois de amparo, aconchego, acolhimento é feito o melhor caminho. Caminho que se desenha com desejos puros, quase pueris. Caminhos feitos de verdades brincalhonas, travessas, transversas.
A alma faz buá, corre para um bueiro, para a beira do mundo, no engano de que se pode fugir, que se pode fingir o que a alma grita, berra. A alma não erra, ela é errante, por isso, ela se move, movediça. É levada, levadiça, como as pontes do castelo, de cada elo do pensamento, cigano, ano após ano. Falsas são as falas, as jóias, as bóias que não impedem naufrágios, ágios que empobrecem o capital, o essencial sentido de tudo...e nada, para sobreviver, para viver na praia, para não fugir da raia, para não morrer de raiva, para manter-se viva!


p.s.: cogitações inspiradas no texto "Sobre a verdade", do blog O medo de Suzana, da Suzana Guimarães.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

sua

Não é asfalto o que vejo no chão da sua rua
Vestida a rigor, você encontra a saudade nua
Na noite perfeita, foi feita a mais bela lua
Em meu pensamento, um girassol ainda flutua
O pó da poesia é o que minha pele sua
É minha agora a hora que já foi sua
 

perca e aprenda

Aprendamos a perder.
Perder o medo, as contas,
as horas.
Perder-se no corpo amado,
tremendo por inteiro e sem temor,
para ser encontrado por si mesmo,
sorrindo a esmo,
perdido de amor.

sábado, 15 de outubro de 2011

relento

Deixarei meus sonhos ao relento,
para que não adormeçam.
Quem sabe, fora de casa,
eles aconteçam.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

A nós, crianças

Criança que engole distâncias e não cansa
Criança que inventa o que já existia (e a gente não via)
Criança que é luz, um convite à dança
Criança que ensina o que eu não mais sentia

domingo, 9 de outubro de 2011

pensamento

Meu pensamento não se importa
com o que penso,
ele vai para onde quer.
Meu pensamento abre as portas
que não posso,
mas não me diz o que vê.
Meu pensamento descobre
o caminho submerso
do coração de uma mulher.
Meu pensamento nem é meu,
pois a todo instante
ele está em você.




sexta-feira, 7 de outubro de 2011

findo fim

Ouvi muitas vezes que o passado e o futuro não existem.
Que só lidamos verdadeiramente com uma dimensão
de tempo: o agora. O passado teria ficado para trás,
fora do alcance até do retrovisor, que só alcança o
que é mais recente, o quase agora. O futuro estaria na
ordem do prematuro, do ainda inexistente, seria uma
espécie de talvez, diluída em bilhões de hipóteses, todas
impalpáveis, incertas. Portanto, o conselho era que o
foco estivesse no dia de hoje ou mais, no momento
presente, numa estreita, exígua fatia de tempo, que mal
cabia na palma de minha curiosidade.
Essa orientação causou em mim uma certa tendência
imediatista, a angústia provocada pelo conhecimento de
que a existência consistia num único passo, pois o próximo
já pertenceria ao futuro e, portanto, seria somente uma
conjectura. E de pouco valeria a memória do que já havia
sido, pois isso pertencia ao mundo do que não pulsa mais.
E lá fui eu, como um saci, sobre uma perna só, tentando
equilibrar-me no estreito espaço do aqui e agora, onde nada
que existe demora, onde não existe hora, só segundo. Ao
menos, segundo os profetas da instantaneidade. 
Confesso que não me senti muito bem. Eu queria mais, não
me satisfazia aquela situação tão provisória, em que a vida,
entendida como um átimo de qualquer coisa, escorria pelos
dedos dos tempos. Cheguei a abolir o uso do relógio, pois
se tudo que me pertence é o agora, os ponteiros não teriam
nada de útil a me informar. Além disso, poderia o relógio
constituir-se em instrumento delirante, pois remeteria ao que
está por vir e, por assim ser, inexiste.
Hoje, sinto a vida de outra maneira, numa perspectiva mais
humana e aconchegante, tridimensional. Passado, presente e
futuro andam sempre juntos, dialogam numa boa, desconhecem
qualquer hierarquia. Eles estão em mim, trafegam pelas avenidas
largas de minha imaginação, sem colisões, conflitos ou disputas
de espaço. Permito-me transitar pelas três dimensões, sem me
perder de mim. Adoro o que vejo nessas viagens, que dispensam
passaporte. Sou cidadão de um universo, em que se fala o idioma
do verso. Aqui a medida de tempo é a emoção que escorre de cada
sílaba para formar a próxima. Neste lugar nada nasce nem morre,
tudo simplesmente é.





segunda-feira, 3 de outubro de 2011

o catador

Sou um catador.
Cato coisas jogadas fora.
Já catei intenções, expectativas, ilusões, pela vida afora.
Sou um catador.
Reciclo o que não se quer mais:
sonhos maltrapilhos, eternidades caindo aos pedaços, barcos sem cais.
Sou um catador.
Recolho o que é abandonado:
desejos grisalhos, utopias obsoletas, amores deixados de lado.
Sou um catador.
Acolho o que é esquecido, onde estiver:
a emoção daquele dia, o olhar que se acendia, o que você disser.






domingo, 2 de outubro de 2011

universo paralelo

Sempre gostei de espelhos. Não necessariamente para ver algo. Aquele objeto é a
própria visão, com seus conteúdos de profundidade e magia, a engolir significados.
Espelhos dão um toque de amplidão ilusória aos ambientes, levando para o fundo
o que está à frente. Na verdade, eles extinguem os limites, criando espécie in door de
borda infinita. E a idéía do infinito me seduz. A gente olha para aquela parede espelhada,
imaginando quem são aquelas pessoas lá longe, sentindo vontade de ir até lá. Uma vez,
ao entrar distraidamente no banheiro de um shopping, dei de cara com um homem muito
parecido comigo, que vinha inexoravelmente em minha direção. Assustei-me, tentei desviar,
mas ele parecia adivinhar meus pensamentos e convergíamos para o mesmo ponto.
Foram necessários alguns segundos para que me desse conta do que havia à minha frente.
Comicidade pura ou a encenação inesperada de um espetáculo dramaticamente cotidiano?
Talvez seja a vida humana um imenso e desconcertante jogo de espelhos, em que nos
surpreendemos com o que já conhecemos, apenas por estarmos submetidos a perspectivas novas.
O que nos rodeia é um amálgama de familiaridade e espanto, repetição e ineditismo.
Existe ainda o espelho metafórico, representado pelo "outro", no qual projetamos
desejos ocultos, crenças remotas, fantasias cifradas.
Aqui a crítica é exacerbada, beirando por vezes a intolerância.
Transformamos outras pessoas em telas, onde assistimos, atônitos, a reprodução
de imperfeições, que nos incomodam profundamente.
Por isso, as rejeitamos, sem nos dar conta de que, mais uma vez, estamos diante de...
réplicas de nossa própria imagem.
Narciso afogou-se na contemplação de sua vaidade, diante do espelho da água.
Tanto tempo depois, os  irreverentes espelhos continuam aprontando travessuras,
mostrando a todos nós o que nem sempre queremos enxergar.