Há pelo menos duas coisas que não abandonamos: a tecnologia e a pressa.
A tecnologia (representada por suas astuciosas maravilhas) guarda todas as nossas amizades, breves confissões, inconfessáveis mentiras, tiras de verdades (que
se tornam tão rapidamente obsoletas quanto os produtos que adquirimos), abocanha parte considerável do nosso tempo, dispensa visitas presenciais, expressa sentimentos por abreviaturas quase indecifráveis, decifra privacidades,
banalizando-as, redefine o conceito e o exercício da solidão, mascarada pelo número espetacular de "amigos" virtuais e acrescenta ao trânsito perigos iminentes,
bastando o ruído do recebimento de uma ligação ou, ainda pior, de uma mensagem de texto, para que a "vida" resuma-se ao que a telinha da engenhoca contém.
A pressa já existia como predadora da serenidade humana, muito antes da "digitalização da existência". Mas parece ter ganho contornos ainda mais dramáticos, a partir do momento em que a instantaneidade de quase tudo está ao alcance de quase todos. Dorme-se pela metade, acorda-se pela metade, vive-se pela metade.
As outras metades são deletadas pela urgência irracional, fruto da ansiedade onipresente, que tritura o bom senso e promove o carnaval da indústria farmacêutica.
Drogas legais (somente na acepção jurídica, tá?) substituem, quase impunemente, o diálogo, o afago, o colo. Em contraposição, os calos nos dedos, as lesões por esforço repetitivo, os corações competitivos e calados, a repetição de rotinas travestidas de anciãs novidades e a sombra da depressão ganham espaço no mercado, que compra suas ações e as vende para nós, incautos. Não compramos gato por lebre, compramos febre por lebre. Gastamos 8 horas do dia trabalhando, outras 4 horas no transe do trânsito, fingimos que dormimos outras 8 horas. Nas 4 horas restantes, o que resta de nós sai em busca de alguma coisa que nos desperte, que nos conserte, que nos torne reais para nós mesmos. Que saudade do tempo em que éramos de carne e osso!
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