sexta-feira, 28 de março de 2014

quando

A beldade de repente se sente feia,
como a aranha caindo em outra teia
O valentão se borra todo,
quando o medo é maior que seu engodo
O garanhão brocha,
quando só sensibilidade acende a tocha
O poderoso pede colo,
quando o teto se aproxima do solo
O mentiroso se apavora com a verdade,
como a fome teme a saciedade
O ódio conhece a ternura,
mas se protege da cura
O tirano espalha a intolerância
que espelha a sua inacabada infância
A falta assegura o desejo,
mas ter boca não garante o beijo
Antes de nascer, era tudo um breu
Agora, o que será que aconteceu? 

domingo, 23 de março de 2014

multi

Prefiro multidons a multidões.

sexta-feira, 21 de março de 2014

linhas tortas

Falta água porque sufocaram nossos rios com oceanos de ganância desértica. Esquartejaram nossas florestas e o que delas resta ainda atiça o apetite voraz de clãs que desdenham do nosso destino, com suas garras e guerras clandestinas.
Falta luz nas lâmpadas das cidades e dos campos, pois as mentes atrofiadas e a ignorância afiada dos governantes (com ou sem mandato) adoram a escuridão, pois ela nos rouba a claridade e a clareza de que necessitamos para perceber o esdrúxulo apagão ético que nos assombra. Cabe a nós sair da sombra do tanto faz, para declararmos que sobras indigentes e obras faraônicas não nos satisfazem mais. 
Queremos luz, dentro e fora da gente. Que chova em nossas hortas, que a esperança bata em nossas portas. Que nossos direitos sejam respeitados, ainda que escritos em linhas tortas.

terça-feira, 11 de março de 2014

prova de amor e a efemeridade das coisas

Vi o filme com os olhos hidratados. Afinal, é muita emoção, com situações limítrofes, em que vida e morte trafegam paralelas. A angústia das perdas, do que cessa, sem nos consultar, da aflição de sentir escorrer o que parece (parece) ser tudo que temos.
Ao sair do cinema, pus-me a refletir: ora, a manhã linda de qualquer dia, mês e ano nunca mais acontecerá e, nem por isso, nossos corações apertam-se, por essa irrecorrível passagem. N
unca mais teremos a idade que já tivemos, nunca mais jogaremos aquela partida (ainda que outras se sucedam), o sanduíche delicioso que provamos e arrebatou o paladar não se repetirá, ainda que tantos outros sejam saboreados. Os amigos e amigas com quem convivemos, atualmente, crescem, modificam-se, mudam (de endereço, de perspectivas, de estado civil, têm filhos, trocam de profissão...). Portanto, eles não serão, mais, os mesmos.
Todas as noites morrem no amanhecer, todo os Sóis se põem e, ainda que voltem a despontar no horizonte, será outro Sol, diferente dos demais. Os caminhos que percorremos, diariamente, renovam-se, de acordo com nossa percepção, atenção, estado de espírito. Nós trocamos de pele, constantemente e a pele é o nosso maior órgão, assim, também nós deixamos de ser, fisicamente, o que fomos, embora não percebamos as metamorfoses.
Variamos de projetos, de prioridades, há sonhos que rejuvenescem, outros que se escondem em guardanapos, espelhos, troncos de árvores, palmas das mãos, bilhetes enrugados.
Em suma, a vida coleciona despedidas e, concomitantemente, nascimentos, surpresas, novidades.
Há porvir por toda a parte, a prover olhares novos, sonhos novos, esperanças nascituras, fantasias que engatinham, em busca da realidade que as adote e as torne adultas.
Assim é a existência - coisas que acontecem, crescem, transformam-se, para que outras cheguem, ocupem seu espaço, floresçam, em moto contínuo. Aí repousa a beleza de ser, o encanto que surpreende, pela renovação e pela impossibilidade de encarceramento.
Vida é liberdade, é movimento, é o rio que, somente na aparência, é sempre o mesmo.
Portanto, a maior prova de amor à vida é viver, boquiabertos por tudo que esse processo maravilhoso é capaz de nos oferecer. Ele traz, ele leva, releva e nos sorri, infinitamente, pois infinita e imortal é a nossa paixão de estar aqui, com todas as incertezas que nos impelem a prosseguir, a criar, a sorrir, a chorar, a catar desejos, em nós mesmos, a cantar para que nossos temores adormeçam e tenham dias e noites serenos.
Vamos dançar? Eu quero dançar, quero aprender, quero estar junto, juntar os ecos, desfraldar os egos, soltar os pregos, revoar...despregar a imaginação, apregoar a imagem e a ação, redescobrir que tudo está e sempre esteve aqui, bem junto e dentro de mim.

inteligência inteligente

Como aquela pessoa é inteligente, fala vários idiomas!
Nossa, que pessoa genial, matemática para ela não tem mistério algum!
Quem não ouviu frases como essas, proferidas com indisfarçada admiração e até certo sentimento de inferioridade?
A compreensão cartesiana da vida quantifica "poderes", atribuindo-lhes carisma e reconhecimento. Meras habilidades cognitivas podem transformar-se em trun
fos definitivos, que garantem ao seu detentor um lugar ao sol no disputado topo
da pirâmide social.
Mas há inteligências múltiplas e não somente aquela coloquial, tradicionalmente equivocada e perigosa, representada pelo QI. Assim, um indivíduo pode desenvolver
inteligência matemática, linguística, musical, espacial, corporal, interpessoal, intrapessoal, naturalista, existencial. Uma delas ou até algumas, em graus diferentes. Mesmo assim, isso não significa superioridade alguma. Trata-se de vocação, potencialidade desenvolvida naquela área, alguma inspiração mais alentada num campo específico de atuação humana.
O transtorno antissocial também conhecido por psicopatia acomete sujeitos não raramente articulados. Podem ser pessoas divertidas, de papo envolvente, eloquentes, hábeis em respostas rápidas e sedutoras, altamente convincentes em suas estórias improváveis, mas com tamanha habilidade dissertativa que transmitem credibilidade. Apostam muitas vezes no jogo de aparências e freqüentemente são pessoas charmosas e simpáticas.
Portanto, ser "inteligente" não é sinônimo de grandiosidade humana, representada, ao
meu sentir, por atributos outros, como generosidade, simplicidade, compaixão.
Inteligente é gostar de gente e de animais, é dar algo a mais, sem esperar o troco. 

quarta-feira, 5 de março de 2014

por fora

Preconceituosos do mundo inteiro, uni-vos!
Sim, agrupem-se, bem juntinhos. Ouvidos, narinas, olhos bem abertos para o que tenho a lhes dizer.
Pasmem, não sou branco, não sou pobre, não sou mulher, não sou manco.
Portanto, sou e não sou alvo (aliás, nem um pouco alvo sou) da ira de vocês, por ser um misto de proletário e burguês, filho de branca com mulato, a faculdade até que me deu um trato, mas 
meu retrato responde a algumas dúvidas, mas nem todas.
Mas isso só em tese, pois resolvi que, diante de vocês, serei negro, mas também mulher, homossexual, nordestino, pobre, como outro pobre qualquer, analfabeto de pai e mãe (solteira), prostituta, mas astuta o bastante para saber excluir quem me exclui e, pior ainda, não possui a mínima capacidade de penetrar em meu corpo e muito menos na minha história, em minha memória. Quero milênios-luz de distância daqueles que desconhecem a luz, que carregam a cruz da impiedade, da indiferença.
Sem qualquer ofensa, vocês precisam comer muito feijão para subir o morro com a lata d'água na cabeça e samba no pé, além de segurar o moleque com uma das mãos.
Mais Lincoln e menos Bush, mais Geni que Zepelim, mais Lapa que Morumbi, menos Caxias que Zumbi.
Mais miscigenação e menos fronteiras. Mais oxigenação e menos besteiras.
Que as diversidades espalhem-se e despoluam, uma a uma, todas as cidades e mentes.
Atavismos não são eternos, intolerâncias também não serão.
Preconceituosos do mundo inteiro, unam-se aos diferentes e vocês terão a maior surpresa de suas vidas: somos todos muito parecidos, por dentro. E quem não perceber nada disso...está por fora.

segunda-feira, 3 de março de 2014

quem são?

Quem são os hiper-seguros, cheios de si, inabaláveis, os colecionadores de certezas, os que jamais erram o alvo, os que ganham sempre, quanto mais a gente perde?
O que há por trás desses olhares indiferentes, altivos, assépticos, supostamente seletivos?
Seres quase imaginários, tubarões terrestres e terríveis, com insaciável apetite por peixes pequenos. 
Os que torcem o nariz para a simplicidade explícita, talvez pela ação de seus implícitos complexos.
Certamente, incomodam-lhes os odores periféricos, os sovacos do anonimato, os fluidos do cansaço cotidiano, a embriaguez não alcoólica de corpos vencidos pela mais valia.
Dominam ou tentam dominar tudo e todos, inclusive idiomas, exceto o da compaixão.
Sabem muito, sabem tanto, mas sem qualquer sabedoria.
"Miami para eles, me ame para nós".

a grande beleza

A grande beleza está nos hiatos misteriosos entre as palavras,
naquilo que reluz em meio à feiura presumida.
A grande beleza está na aceitação de nossa inevitável finitude,
no material de demolição que se transforma numa escola.
A grande beleza está no perdão que nos concedemos, para sermos
capazes de perdoar quem quer que seja e esteja ao alcance de nossas
mãos.
A grande beleza está nos calos do labor, nos colos de quem sabe cuidar,
em tudo que podemos verdadeiramente chamar de amor.

domingo, 2 de março de 2014

latas e relatos

Prefiro latas vazias a relatos vazios. 
Nas latas, eu planto alguma coisa ou chuto para a lixeira.
Os relatos só chuto, ciente de que não será gol.
Latas vazias já tiveram conteúdo.
Um relato vazio já nasceu mudo.