quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Glória

O Chile embelezou minha terça com uma história de primeira. Uma mulher jovem, à beira dos 60 anos, transpirando vida por todos os poros, iluminando os porões da desesperança que poderia acometê-la, revela-se à luz de si mesma. Os desenganos não
conseguiram desenganá-la, as dores não foram capazes de torná-la incapaz, a insegurança não a segurou entre quatro paredes assépticas. Ela colocou seu bloco nas ruas, despreocupada com quem a seguiria ou riria de seu en
redo. Não se acovardou diante dos tantos e tantos medos e dos arremedos de homens que atravessaram seu caminho, sem merecer o compartilhamento de seus travesseiros. Faltava a eles a compreensão sutil de suas sublimes travessuras. A usura de sensibilidade foi insuficiente
para travar o entusiasmo intransitivo de Glória. Ela penetrou nos mesquinhos, muito mais efetivamente que a mesquinharia deles naquela mulher de todas as idades, dessas flores
raras que talvez habitem jardins de qualquer cidade, mas cujo aroma tem a capacidade de encantar. Glória não é uma sonhadora, ela é o próprio sonho de um mundo que acolha todo mundo que tem tempo para sonhar e coragem para prosseguir, depois de acordar.

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Quem tem medo de Virginia Woolf?

O absurdo das realidades, muito mais estarrecedor que o das fantasias, faz cabeças e corações girarem, junto com o cenário. Personagens e platéia embriagam-se com as doses sucessivas de ácida ironia. Não há heróis ou vilões, aquelas pessoas, agrupadas em casais, vivem hipoteticamente em qualquer lugar, condomínio, vila, pequena ou
grande cidade, às margens de um oceano revolto de revoltas, capaz de promover reviravoltas em estômagos despreparados para a digestão difícil de situações dificilmente inexistentes aqui e acolá.
A realidade do absurdo é traduzida, engolida, abduzida por todos, mas na base da pirâmide quem admitiria o irrefreável desejo de demitir o empregador? Sobreviver aos jogos, cujas regras são desconhecidas, constitui-se em meta obsessiva que vai, aos poucos, desconstituindo valores, dissolvendo subjetividades, entregues à sorte ou ao
azar de dados que rolam como cabeças não pensantes, como escadas rolantes que transportam sempre para o mesmo não lugar.
Amor e ódio, ódio ao amor, amor ao ódio, pares de opostos dispostos a elevar a indisposição à estratosfera, feras habituadas às garras, às guerras sempre frias, ainda que em meio a incêndios sucessivos, que reduzem todas as cores a cinzas.
Quem tem medo das correntes, das correntezas que arrastam para o fundo da superficialidade recorrente?
Quem tem medo do lobo mau? E quem é bom, ao deixar-se devorar pelas presas, suas ou alheias, que abrem as portas às escravidões?

Quem não tem medo de desvirginar lobos?

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

romântrico

Sou um amontoado de dúvidas, de incertezas que ficam à flor da minha pele, como espinhas juvenis. A todo momento, esse acervo de "imperfeições" é provocado. Ouço e leio sobre amor romântico, cuja morte é anunciada de maneira análoga ao fim do mundo. Mais uma vez, minha limitada compreensão das coisas torna-se boquiaberta. Afinal, para que nome e sobrenome ao que simplesmente acontece com o coração da gente? Não sei se meu amor é romântico, talvez seja "romântrico", pois creio que ele se aprimore com o exercício tenaz. É desejável ser constante na inconstância dos sentimentos, senti-los permanentes,
em meio à impermanência de todas as coisas. Portanto, prefiro afirmar que apenas amo. Romântica é a poesia, o poeta é...o poeta. Noutras páginas, sou visitado pela dicotomia esquerda e direita. Esquerdismo versus direitismo, socialismo em confronto com o capitalismo. Ora, ora! Esquerdistas célebres, mormente no poder, são autores de "obras" que nem todos os reacionários seriam capazes de realizar. Aliás, desde (e
mesmo antes) de Maquiavel, a noção de poder assombra gregos e troianos. À sombra, novamente flagro-me embasbacado. E tomo uma decisão: para mim, eticidade, amorosidade, fraternidade, altruísmo, generosidade, elegância e sensibilidade são e serão sempre atributos muito bem vindos, além de vizinhos muitíssimo próximos e íntimos. Digo isso sem olhar para os lados, até porque gosto de olhar de frente.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Ela

O filme "Ela" é janela para um futuro tão presente em nossas vidas.
A solidão gritante, as memórias escondidas na estante, a necessidade
inadiável de ter ao menos um dia diferente, nem que seja só por um
instante.
Sistemas operacionais suprindo ausências sufocantes, a voz onipresente,

decifrando abismos, abalos sísmicos nas emoções, todos os sons da alma
reunidos na existência incorpórea, que torna o corpo quase desnecessário.
Inteligência artificial, que atinge em cheio existências superficiais. Subitamente,
a mente sucumbe às pulsões que fazem o pulso bater de novo com força.
Assim, como afirmar categoricamente o que é real? A trajetória do protagonista foi alterada pelo timbre da cumplicidade, da harmonia, da intuição, que foi capaz de dissolver o que os olhos viam e de devolver ao coração o que ele tanto queria e precisava "ver".

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

o gelo mais quente

O gelo esquenta, no contato com patins, esquis, esportes "esquisitos" e muitas belezas afins. Talento que se equilibra na persistência, ritmos que parecem derreter a neve, êxtases que guardam entre parênteses a exaustão. Será que rola suor ou somente as lágrimas dos que fazem tudo aquilo e da gente que se emociona ao ver do ser humano simplesmente o melhor?

domingo, 16 de fevereiro de 2014

acordamos

Acordamos. 
Nos dois sentidos.
Demos corda neles e eles em nós.
Que sentido faria desacordar os sentidos?
E quando a corda acaba...abracadabra, ela se recorda em nós.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

aos banidos

Um olhar não banal aos banidos
das enquetes e dos banquetes
Um olhar aquecido aos esquecidos,
aos que parecem parecidos, no parecer das manchetes

habeas corpus

Soltem o malvado e mantenham a maldade presa.
Saiam do escuro, deixando a escuridão acesa.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

a passada do medo

E se você disser para o medo...passa amanhã?
Mas amanhã você não estará mais lá e o medo...passará.

p.s.

Acolhimento é fenômeno essencial à saúde física e emocional.
Esse sentimento encontra sua expressão mais aprimorada no conceito de cuidado.
Cuidar não é para qualquer um, mas só para aqueles que sabem a importância de serem cuidados. E isso vale tanto para o corpo quanto (e principalmente) para a alma.
Saber cuidar tem alguns requisitos básicos: renúncia parcial à visão do próprio umbigo e satisfação com a satisfação do outro, em contrato (além de contato) afetivo sem cláusula ambígua. 
p.s.: desnecessárias as assinaturas de testemunhas.

toda ouvidos

...se fosse apenas o que eu toco com os sentidos...
Mas e o que aguça a audição da minha alma, como se ela tivesse ouvidos?

o ronco

Quando a ousadia dorme, a angústia ronca.

a linha da vida

A linha da vida é puxada incessantemente pelo passado, arrastando o futuro, que sai do escuro e mostra a sua cara. Isso escancara que o presente é errante, esquio surfista desse mito que é o tempo. O tempo, ao desembarcar do futuro, já faz seu "check in" para o passado, estação cada vez mais populosa. Portanto, o presente é um hiato entre duas instâncias, cuja distância não varia, nem com varinha de condão. 
O verdadeiro e delicioso presente está justamente na passagem da linha, que desalinha os receios fugazes e permite ao olhar sereno o deslumbramento com a existência sutil, tão mais fascinante que a existência (f)útil.