Como é que pode? Quantas vezes exclamamos a surpresa, perplexidade diante
do que nos parece absurdo, incompreensível. Por mais voltas que o mundo dê,
remanescem motivos para estupefações, dessas que deixam a boca aberta, só
que por uma fome inversa, ou seja, a necessidade de colocar para fora, extravasar.
E a vida é causada, provocada por fomes. São as lacunas que impulsionam. O que
nos move são apetites. É a saliva da ousadia que anuncia os desejos, os saltos na
escuridão do novo. São as marés infinitas da curiosidade inata, trazendo e levando
coisas, influências, possibilidades, vontades. Verdades que colhemos como conchas
e que apodrecem, se não dermos vida a elas. Uma verdade inerte sofre a metamorfose
oposta, de borboleta à lagarta. Perde as asas, desaprende a voar, não serve para nada.
Movimento é o combustível de qualquer transformação. Idéias, sentimentos, emoções
são nômades por natureza, indomáveis. Só assim renovam-se, mantendo-se vivos e
funcionais. O ar precisa circular, a existência deve ser vascularizada, para que exista.
Como é que pude? Agora, questionamos os nossos próprios atos. De onde veio esse
desatino? Pergunta-se a criança de qualquer idade. Ora, tudo vem do mesmo lugar,
da mesma fonte. Alimentamos o dia de hoje com o de ontem. Requentamos o pão, o
não. Empreendemos as mesmíssimas fugas, os velhos estratagemas, transformados em
algemas. Somos prisioneiros dos medos que inventamos, das tolices que inventariamos
periodicamente e que nos mantêm atados a crenças imobilizadoras. Imobilidade é a
antítese do movimento. Almas imóveis são presas fáceis de problemas muito difíceis de
resolver. A não ser que resolvamos sacudir a poeira do passado, amarrotando tantas
mazelas inúteis e dando a todo esse entulho o destino que merece.