quinta-feira, 30 de abril de 2015

Leia

A siderúrgica intolerância contra o que se considera reprovável no outro revela um angustiante repúdio pelo que há de pior em si mesmo. Esconde-se o lixo, o tapete e exibe-se o prolixo topete para vomitar lições moralistas. E a lista de torpezas é longa. Ataca-se o que causa temor. A prática de injustiças com as próprias mãos, os linchamentos sumários das diversidades, o enforcamento da liberdade, o fuzilamento do perdão.
Erros podem ser superados, redimidos. Mas como corrigir o erro de ceifar uma vida? A pena de morte é, sim, medieval, jurássica, brutal, lastimável.
Simboliza a obscuridade humana, a supremacia do obscuro desejo de vingança. Nem mesmo o mero assassinato da pena de morte conduzirá à evolução humana. Ela é só um sintoma. Precisamos descobrir vacinas contra a indiferença, o desamor, o analfabetismo espiritual. Até hoje, mulheres são apedrejadas ou mutiladas genitalmente. A escravidão não
foi abolida, apenas ganhou novas embalagens. Professores são agredidos, moradores de rua incendiados, no mínimo, pelo fogo da eugenia. A indignação popular é sufocada com spray de pimenta. Mas pimenta nos olhos dos outros é refresco para quem pratica atos de onanismo com o sofrimento alheio. E nenhum de nós deve ficar alheio à angústia alheia. Diante de qualquer atrocidade, não feche seus olhos. Entenda que há uma mensagem urgente nos olhos de quem padece. Leia.

quarta-feira, 29 de abril de 2015

provocações

Provocações. Provas nada cabais. Bacanais de ideias saltitantes. Aquilo que vem com a vida e o que chega antes. Hoje aconteceu um desmaio. Logo eu que nasci em maio, logo eu tinha que desmaiar? Desfiz o que ainda será feito, de um jeito estranho que não era meu jeito. Joelhos em forma de cunha, tão assimétricos que me fazem crer que joelho é só uma alcunha. A vida da gente é uma tourada esquisita, em que somos pegos à unha. Por quem nem sabemos. E, no meu caso particular, o touro sou eu. E o toureiro, quem será? Quase plantei bananeira. Compus um poema sem eira nem beira. Quando nos desarrumamos, amamos qualquer besteira.
p.s.: homenagem simplória ao pensador Antônio Abujamra, que partiu deixando conosco seus pensamentos provocativos.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

rótulas

Que venham os audazes, os inconformados, os que se colocam à margem dos trilhos chatos e previsíveis. Louvemos a imprevisibilidade da arte, a alternância da Natureza, a sagacidade da irreverência, que enlutam a repetitividade estéril. Fundemos a matemática inexata, a gramática da espontaneidade, a legislação libertária, a filosofia da loucura construtiva. Pontes no lugar de muros, abraços ao invés de murros. Menos rótulos e muito mais rótulas, ensejadoras de luz e ar.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

pactos e cactus



Os relacionamentos humanos são mantidos por meio de pactos, explícitos ou tácitos. Os acordos mantêm as relações acordadas,
hidratadas. Mas elas (as relações) não resistem aos desertos e em meio às tempestades de areia podem sucumbir. É recomendável, portanto, evitar ou ao menos tentar evitar que os pactos transformem-se em cactus.

maçãs e caquis

Fugir ou fingir? Se for esta a encruzilhada, creio que não restará mais nada. Fingir é fugir da verdade, é nadar em seco, é sair da raia, pular a cerca e morrer bem longe da praia.
Melhor será rugir, fustigar a indigência moral. rosnar para o cinismo, mostrar os dentes para as serpentes, persuadi-las de que existem tentações bem melhores do que maçãs envenenadas.
Ora, ora, haverá conserto para o que fratura a estética da alma?
O paraíso é aqui e, cá entre nós, prefiro maçãs a caquis.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

a pera

Eu trocaria a eternidade por uma pera. Uma pera no lugar de toda a espera.
Desde que eu pudesse prová-la e prová-la e prová-la sem acabar com ela. 
Que a pera fosse minha semente, para que ela se reproduzisse em mim,
como um eco bom. Um beco que se alargasse, transformando-se num mundo
sem tamanho. Afinal, o meu próprio lugar, onde eu não me encolha e me colha,
como a pera. Eu tocaria na eternidade e então só restaria a paz e a pera, no lugar 
de toda a áspera espera.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

distâncias

O que faz um barco no meio do deserto?
Se não compreender as distâncias, melhor nem chegar perto.

coisas e pessoas

Se falássemos a mesma língua
Se houvesse em nós o mesmo paladar
Se a paz coletiva não estivesse à míngua
Se tivéssemos o mesmo para dar

Se a nossa natureza fosse mais natural
Se chamássemos a autenticidade de beleza
Se dividíssemos melhor as riquezas: que tal?
Se valorizássemos mais a dúvida que a certeza
Se déssemos um pouco de descanso ao celular
Se nos déssemos as mãos, ao invés de algemas
Se perdêssemos o imenso medo de amar
Não mudaria muita coisa. As pessoas, apenas.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

as marés

"O mundo está dividido entre os indignos e os indignados". Eduardo Galeano

Antes de mais nada, eu me indigno com minhas indignidades. Quase sempre íntimas, mas sempre minhas. Não sei se derrotarei todas, sei que elas não me vencerão. Pois não me convencem. Meus edifícios foram construídos com material de demolição. Como é difícil sobreviver à poeira dos percalços, caminhar sobre pedras com os pés descalços! Das feridas cicatrizadas vem o calo, mas elas ainda estão ali. Se ele ficar muito alto, eu o escalo, mas ele ainda estará acima de mim. De sobreaviso, alertando-me para os perigos das marés.

Cara Clarice

Criancice, meninice, adultice, mágica Clarice.
Mas quem disse que a magia é crendice?

o que queremos?

Queremos remos para vencer nossas próprias correntezas
Queremos rumos que nos conduzam a fugazes certezas
Queremos Neros que incendeiem nossas ruínas
Queremos renas para guiar nossas retinas
Queremos rimas para enfeitiçar as rotinas
Queremos cabeças para atiçar guilhotinas
Queremos liberdade para decidir quem merece tê-la
Queremos luz a mercúrio para uns e para os demais vela
Queremos colecionar vantagens indivisíveis
Queremos que nossos defeitos sejam invisíveis
Queremos erradicar tudo que nos incomoda
Queremos que nossos caprichos estejam sempre na moda
Queremos um mar, para naufragar o tédio
Queremos o mal, para descobrir o remédio
Queremos matar a morte e morremos de medo da eternidade
Queremos, queremos, queremos...mas o que queremos de verdade?

domingo, 12 de abril de 2015

Procura-se talento

Procura-se talento! 
Em diversas áreas da atuação humana, o marketing assume ares de vedete. As grandes atrações estão mais nos cartazes, nas redes sociais do que nos palcos. Talvez não seja mais necessário ser bom para ser famoso. A importância de alguém passou a ser mensurada por outros critérios. O grande negócio é fazer dinheiro, é faturar. Quanto às plateias, crentes ou ateias, entoam seus mantras, seus gritos de guerra, em busca
da paz. Treinar, ensaiar, verter suor, repetir para ser original? Isso é ritual de poucos. E, aos poucos, nos habituamos com a indigência de brilho, com a escassez de genialidade. Há mais geniosos que geniais. Mais gananciosos, mais ansiosos e menos essenciais. Sentimos falta do camisa 10, do nota 10, do destaque que vá além de um carro alegórico.
Que saudade daqueles que não atravessavam o samba, daquela gente bamba, que se equilibrava nas cordas de mesmo adjetivo, com o único objetivo de fazer o povo mais feliz.

terça-feira, 7 de abril de 2015

encontros e encontrões

Tornou-se uma raridade encontrar alguém, sem a presença desconfortável de uma barreira. Por vezes, a muralha é visível: o celular, o relógio, as coisas ditas inadiáveis, os compromissos que atingem como mísseis o desejo de permanecer. Noutras, a distância é intangível, indecifrável: frases sem sentido, olhares de curtíssima duração, gestos obsoletos, perguntas decoradas que prescindem de respostas, clichês nada chiques.
Quero a volta dos longos abraços, dos papos atemporais, das lágrimas de alegria ou de tristeza, compartilhadas por alguém que nos quer bem, que nos entende sem decifrar. Reivindico a moratória da ingenuidade perdida precocemente, a extinção das partidas sem a contrapartida das chegadas, o fim da terceirização do afeto, do cuidado, do aconchego.
Como disse Benjamin Disraeli, a vida é muito curta para ser pequena.

o que me deste

O que me deste, destino?
A possibilidade de crescer, crescer, até voltar a ser menino
O que me deste, destino?
Dez motivos para prosseguir, sem saber o caminho
O que deste, destino?
A sensação de ser carioca, paulista, mineiro, gaúcho e nordestino
O que me deste, destino?
O sabor da eternidade e do eterno repentino
O que me deste, destino?
O amor à liberdade e o conforto uterino
O que me deste, destino?
A capacidade de desfazer nós, fazendo tanto desatino
O que me deste, destino?
Um instrumento que ainda não domino e mesmo assim afino

sexta-feira, 3 de abril de 2015

premonição

Estou convencido: há vida antes da morte!

quarta-feira, 1 de abril de 2015

primeiro de abril

No dia da mentira, quero trazer à baila o balé de inverdades que dançamos não raramente. Pessoas que não tremem, que não temem, que têm na ponta de suas línguas respostas perfeitas. As que não titubeiam, não bobeiam, não se contradizem. Eca! Venham a mim os
indecisos, os tementes, os que têm na língua o paladar da dúvida e nos dedos o tato da imperfeição. 
A mentira possui diversos heterônimos: tabus, mitos, fofocas, boatos. Ainda que neles repouse um grama de verdade, será somente ardil para melhor iludir. O sofisma é a obra prima do enganador, do maquiador de farsas.
O dia da mentira não a homenageia, remete-nos à lembrança de golpes duros na vida, na liberdade, no direito de ir e vir das utopias. Não censuro a mentira, por deplorar a censura. Simplesmente, não lhe dou audiência.