Se eu afirmasse que estamos ficando muito caretas, possivelmente, estaria mostrando uma pequena fração da realidade. Não é de agora, assombra-me o crescente controle sobre a individualidade. Câmeras a cada quarteirão, dentro de estabelecimentos comerciais, consultórios médicos, elevadores, como se estivéssemos permanentemente cercados por paparazzi. O trauma estimulado da insegurança urbana principia a justificar e legitimar a usurpação da privacidade. As cidades e os cidadãos estão se habituando perigosamente à cotidianização dos perigos. Pardal, em minha infância, era apenas um passarinho e tinha penas. Agora, é metálico e as penas são pecuniárias, para aqueles que ultrapassem os limites de velocidade. Mas com que espantosa velocidade hábitos e costumes estão se adequando à ideologia do medo. Há muito tempo deixei de assistir telejornais, por não suportar o desfile de tragédias, chacinas, escândalos, crimes de toda natureza., inclusive contra a própria. Eu, que jamais sofri de insônia, passei a conviver com sonhos, quer dizer, pesadelos, formados pelos restos diurnos (e principalmente noturnos) de tanta mazela. No futebol, fenômeno similar ocorre. Os árbitros tornaram-se dublês de censores, fiscais dos bons costumes, a distribuir "cartões amarelos" indiscriminadamente, cerceando a magia do esporte, privando o destinatário final do espetáculo - o torcedor - daquilo que ele mais gosta (o balé dos atletas virtuosos, a efusiva comemoração dos gols, a irreverência). O que se deseja? Reverências ao poder, distribuição de cartilhas que ensinem a ser bem comportado, artistas transformados em seminaristas? Alguém levantará a voz, lá do fundo: mas e a violência das torcidas, a falta de profissionalismo de tantos jogadores, as simulações, que jogam a torcida e a midia contra os árbitros e blá blá blá...?
Exatamente o argumento pronto, na ponta da língua, a respeito da violência nas ruas, que sequestra a serenidade da população, exigindo um altíssimo valor de resgate: a própria liberdade. Tornamo-nos reféns de nossos medos, que são o adubo mais eficaz para a bigbrotherização consentida de nossas vidas.
Sonho com a humanização das metrópoles, com a revolução espiritual que diminua a abissal distância entre Criador e criaturas. Exatamente por essa utopia que carrego insistentemente comigo, não me conformo com a miniaturização da existência. Pão e circo não são suficientes para satisfazer estômagos e mentes famintos.
Qual a origem da selvageria das torcidas de futebol? Será que existe alguma correlação entre violência e esporte ou o esporte para alguns é ser violento? O que está por trás da barbárie? Pessoas saudáveis agem assim? Quais as medidas preventivas (muito além das repressivas) para drenar a hemorragia de infelicidade? Somos violentados seguidamente pelos abandonos, pelos donos da verdade, pelos neo-senhores feudais que tentam expropriar nossas consciências.
Clamo por ciências a serviço do ser humano, onde quer que ele esteja, quem quer que ele seja.
Restituam-me o direito de sorrir, sem ser filmado.
Não quero me armar, quero amar e ser amado.