segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Crônica

Se eu afirmasse que estamos ficando muito caretas, possivelmente, estaria mostrando uma pequena fração da realidade. Não é de agora, assombra-me o crescente controle sobre a individualidade. Câmeras a cada quarteirão, dentro de estabelecimentos comerciais, consultórios médicos, elevadores, como se estivéssemos permanentemente cercados por paparazzi.  O trauma estimulado da insegurança urbana principia a justificar e legitimar a usurpação da privacidade. As cidades e os cidadãos estão se habituando perigosamente à cotidianização dos perigos. Pardal, em minha infância, era apenas um passarinho e tinha penas. Agora, é metálico e as penas são pecuniárias, para aqueles que ultrapassem os limites de velocidade. Mas com que espantosa velocidade hábitos e costumes estão se adequando à ideologia do medo. Há muito tempo deixei de assistir telejornais, por não suportar o desfile de tragédias, chacinas, escândalos, crimes de toda natureza., inclusive contra a própria. Eu, que jamais sofri de insônia, passei a conviver com sonhos, quer dizer, pesadelos, formados pelos restos diurnos (e principalmente noturnos) de tanta mazela. No futebol, fenômeno similar ocorre. Os árbitros tornaram-se dublês de censores, fiscais dos bons costumes, a distribuir "cartões amarelos" indiscriminadamente, cerceando a magia do esporte, privando o destinatário final do espetáculo - o torcedor - daquilo que ele mais gosta (o balé dos atletas virtuosos, a efusiva comemoração dos gols, a irreverência). O que se deseja? Reverências ao poder, distribuição de cartilhas que ensinem a ser bem comportado, artistas transformados em seminaristas? Alguém levantará a voz, lá do fundo: mas e a violência das torcidas, a falta de profissionalismo de tantos jogadores, as simulações, que jogam a torcida e a midia contra os árbitros e blá blá blá...?
Exatamente o argumento pronto, na ponta da língua, a respeito da violência nas ruas, que sequestra a serenidade da população, exigindo um altíssimo valor de resgate: a própria liberdade. Tornamo-nos reféns de nossos medos, que são o adubo mais eficaz para a bigbrotherização consentida de nossas vidas.
Sonho com a humanização das metrópoles, com a revolução espiritual que diminua a abissal distância entre Criador e criaturas. Exatamente por essa utopia que carrego insistentemente comigo, não me conformo com a miniaturização da existência. Pão e circo não são suficientes para satisfazer estômagos e mentes famintos.
Qual a origem da selvageria das torcidas de futebol? Será que existe alguma correlação entre violência e esporte ou o esporte para alguns é ser violento? O que está por trás da barbárie? Pessoas saudáveis agem assim? Quais as medidas preventivas (muito além das repressivas) para drenar a hemorragia de infelicidade? Somos violentados seguidamente pelos abandonos, pelos donos da verdade, pelos neo-senhores feudais que tentam expropriar nossas consciências.
Clamo por ciências a serviço do ser humano, onde quer que ele esteja, quem quer que ele seja.
Restituam-me o direito de sorrir, sem ser filmado.
Não quero me armar, quero amar e ser amado.


4 comentários:

  1. você inventa sempre um encanto especial para trazer-me aqui:

    - não precisa saltar para as ruas da "realidade real", não precisa sequer saír das ruas daqui, as da "real virtualidade"...

    "Restituam-me o direito de sorrir, sem ser filmado."
    "Não quero me armar, quero amar e ser amado."

    [................]

    espantosa, a sua crónica de hoje.
    beijo, Helcio.

    Maria

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  2. São outros, são tantos encantos, Maria...por todos os cantos...por isso eu canto, enquanto... Beijo

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  3. Ótima crônca. Também não assisto mais ao desfiar das tragédias cotidianas. Por que não se fala de blogs maravilhosos; de poemas recém escritos; da sensibilidade de fulano; da genialidade de beltrano; do humor de sicrano, enfim, do que interessa, é importante e serviria de bálsamo para quem chega cansado do trabalho? Já pensou se pudéssemos ouvir música no Jornal Nacional?
    " ... drenar a hemorragia de infelicidade"," Restituam-me o direito de sorrir, sem ser filmado.
    Não quero me armar, quero amar e ser amado."
    Se fosse um livro, eu usaria o marca-texto nessas frases.
    Aina bem que, apesar de tudo, você continua cantando!

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